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A Távola redonda, ao redor da qual os cavaleiros do Rei Arthur se reuniam, foi criada com este formato para que não tivesse cabeceira, representando a igualdade de todos os membros.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Confissões de um quase morto

Estou partindo, não sei se para uma melhor e o ponto é exatamente esse, não sei, ninguém sabe e jamais saberá o que existe depois do suspiro final, do fim das atividades cerebrais. Esses são devaneios de alguém no meio de tal suspiro, os últimos pensamentos de um cérebro cansado. É  "a vida passando diante dos olhos".
Então vamos ao feedback. Minha vida foi normal, como a de qualquer cidadão comum, nada que valha a retrospectiva, mas aqui estamos nós e se você continua lendo é porque está curioso; Sou brasileiro, nascido para trabalhar e servir ao moedor de carne que é nosso sistema. Somos jogados ainda despreparados no mundo que exige de nós, o que teríamos se nos fosse provido, mas a educação serve apenas para formar reprodutores e armazenadores de informações inúteis, tive que me reinventar quando entrei na faculdade. 
Até aqui nada de incomum no meu país, terminei o curso com a impressão de não ter aprendido nada e no mercado de trabalho vi que realmente não aprendi nada. O que serve é apenas a experiência prática do serviço, a teoria denomina, mas não mostra ou incentiva a praticar. Nada que um estágio não concerte né? Ironias a parte, metade da vida foi de desperdício e a outra metade de real aprendizado para a função que desempenhei como um animal de carga.
Não me restou tempo para a família, quando a tinha por perto estava cansado de mais para desfrutar esses momentos.
Como todos no Brasil fui um bom cristão, escolhi a religião que a sociedade me impôs e hoje, no leito de morte não sei se essa incerteza que a religião vende como certeza é real, sinceramente não sei se valeu a pena ser hipócrita, segregar, julgar, reprimir e me reprimir por uma coisa que nem é certeza. Pra ser sincero a religião até me ajudou a aceitar essa vida de trabalho excessivo caladinho, me contentando em assistir programas de TV aberta no fim dos dias e ter isso como entretenimento.
Ah a televisão... A mídia fez coisas na minha vida que jamais imaginei, agora que parei pra pensar, meu estilo de vida é baseado no que é aceitável pela sociedade e eu sou exatamente igual a todo mundo, que mundo chato! Por que não aceitei as diferenças dos outros? As minhas também; Por que me reprimi e me tornei uma cópia do que esse sistema capitalista me vendeu?
Fui vendido a mim mesmo e o preço foi barato. Hoje me arrependo de ter criado senso crítico na semana de minha morte quando meu neto me apresentou esse termo até então ignorado veementemente por esse pobre moribundo.
Se eu pudesse refazer minha vida, faria tudo diferente. Começaria sem religião, não preciso ser adestrado por um dogma pra ser uma boa pessoa(na verdade isso até me tornou uma má pessoa se analisar friamente), que só agora soa absurdo, tanto quanto história em quadrinho. A partir disso eu aceitaria minhas diferenças e a dos outro, não faria as inimizades que fiz por pura falta de informação, não me privaria das maravilhas que o mundo e a natureza me ofereceram.
A natureza e o universo, esses sim têm leis que mereciam ser estudadas, aperfeiçoadas e seguidas e não um livro velho feito por e para uma sociedade quase tribal. Se eu vivesse mais setenta anos não deixaria esse tal livro me dizer o que fazer, nunca houve provas de que fosse verdadeiro, acreditar por acreditar. Hoje vejo minha vida se tornar insignificante, percebo que eu não vivi e sim, sobrevivi! 
Procuraria extrair apenas o necessário dos anos de estudo inútil desse sistema educacional falido, para aprender a pensar por mim mesmo, formular meus pensamentos e não só reproduzir e gravar os pensamentos um dia formulados por alguém.
Trabalharia no que eu realmente amo e não tentaria me adequar e gostar a força de um serviço que me fizesse ganhar mais dinheiro, simplesmente porque eu trabalharia pra viver e não o contrário. 
Me dedicaria a família, não só no seu sustento, mas participaria do crescimento dos filhos e netos, quem sabe até viveria mais e melhor pra participar da vida dos bisnetos também, já que estaria mais feliz e livre, ao invés de ser esse escravo que adora suas correntes que sou era até um momento atrás.
Parto com a sensação que poderia ter dado muito mais a mim e ao mundo, não contribuí para nada, apenas meu sustento atual numa sociedade em que todos são exatamente iguais a mim.
Isso não é uma crítica ao sistema, isso seria mais um clichê e nesse momento, não sei se perceberam, estou tentando fugir disso. É uma crítica a mim. Se eu não tivesse deixado isso acontecer estaria partindo de bem comigo mesmo, deixando algo valioso pra trás, uma vida bem vivida ao menos. Viver bem deve nos fazer viver mais não é? Logo, não estaria partindo agora, pela lógica ainda teria alguns anos, ou não. 
Viva a certeza da incerteza!